Saudade redentora

Há certos dias que sinto saudade de estar presente em mim, de chegar aonde ainda não cheguei, de ser o que ainda não fui ou de voltar a lugares por onde passei superficialmente, sem tocar como devia.

O volume das coisas, a velocidade do tempo, as muitas perguntas e a ausência de tantas repostas parecem nos tirar da nossa própria presença, separar-nos daquilo que somos, impedir a graça de sermos ainda mais. É paradoxalmente estar presente e ausente em um mesmo corpo – uma dualidade que causa desconforto.

Estar presente em si mesmo é a arte de tomar a vida nas mãos, descrever o eu, dar-lhe nome,  ratificar ou serenar expectativas daquilo que se espera dos outros ou daquilo que os outros esperam de nós. É fazer curas necessárias, potencializar projetos, delinear estratégias, dispor-se a continuar recriando a vida com inteligência, sem abdicar da sensibilidade. Se bem que há quem diga que sensibilidade é por si uma dádiva de pessoas inteligentes.

Somos seres de passagem, a vida é uma passagem, o instante é uma passagem, de modo que em alguns momentos chegamos a pensar que mais estamos do que somos. Estar é passageiro; por isso, sinto saudades de mim, de ser, não somente estar, ou pelo menos, estar por inteiro.
Vivemos em busca da validação de nosso próprio eu, em meio às exterioridades. Constantemente o tempo, as pessoas e as ocupações nos raptam de nós mesmos e ascendem de maneira imperiosa, às vezes violenta e sagaz.

É preciso saber recobrar a posse do que somos essencialmente, tomar-nos nas mãos, reintegrar-nos à raiz da identidade, refazer o pacto amoroso com o gene inicial, não para ficarmos girando em torno de nosso círculo egocêntrico, mas para encontrar nosso ponto de referência interior e sermos mais autênticos/as em nossos processos de incorporação no mundo.

Houve um tempo em que pensei que esta sensação de saudade era ruim; com o passar dos dias, aprendi que na verdade é um sentimento redentor. Ter saudades de si é uma experiência que permite o movimento da redenção, capaz de religar-nos com o que em nós é humanamente divino, autêntico, identitário.

A saudade de algo provoca o desejo de reencontro, de suprir o vazio deixado por aquilo de que se afastou; sentir saudades de si mesmo é desejar adentrar profundamente na aventura de ser dono de si próprio, administrador/a do próprio território. Esta tarefa, ninguém pode fazer a não ser cada um em sua genuína essência.

Perdemos a posse de nós, quando deixamos reinar os outros, a velocidade do tempo, a ocupação demasiada das coisas materiais, as efemeridades sedutoras. Saudade é indício de afastamento, distanciamento e desejo de reaproximação. Tomar consciência disso é abrir caminho de novas possibilidades para nos religar ao nosso eu, ao nosso ponto central de referência e experimentar uma novidade redentora.

Eu me redimo comigo mesma/o quando me reencontro e cada vez que me reencontro, sinto-me plenamente em um lugar que já é meu, e que modificado pela experiência da saudade me permite atuar  de forma autêntica. Uma experiência de redentora integração do meu ser. Ser para mim, ser para os outros, ser para o mundo – eu mesma.

Ir. Janete Silva,CIC

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